Sociedades privadas!?!

Por (Jadir Mauro Galvão) 

O ano de 2006 marca o aparecimento de um conceito que faz uma ligação entre empresas e algumas questões da sustentabilidade. O conceito de Criação de valor compartilhado[1] (CVC), ou em inglês Creating Shared Value. Trata-se de uma idéia bastante interessante que convoca as empresas a observar oportunidades de negócio ainda desconhecidas no exercício da atividade de Responsabilidade Social Empresarial (RSE).
As empresas ao longo do tempo foram tidas como vilãs de certo tipo de apartheid social. O lucro, buscado pelas empresas, acabava concentrando o capital em poucas mãos e alijando boa parcela da população dos benefícios que poderia proporcionar. As desigualdades sociais proporcionadas pelo lucro, sobretudo o lucro excessivo, que teriam a capacidade de produzir valor para os acionistas dessas empresas, se transformaram em algozes, justamente por retirar esse valor do seio da própria sociedade. Ora, é da índole do lucro retirar o valor do público e concentrá-lo no privado. Retirá-lo de muitas mãos e concentrá-los em poucas sem que exista nisso qualquer contrapartida. O lucro não é a remuneração do trabalho exercido pela empresa, isso compõe o custo, ele é o excedente. Tampouco se pode falar que sem o lucro a empresa ficaria impedida de crescer e prestar maior serviço à sociedade. Em empresas bem organizadas essa verba de investimento para o crescimento já está inserida nos custos. Mais ainda o lucro é excedente. Esse excedente sai de algum lugar sem qualquer contrapartida. Ele retira valor e não gera valor. Apenas transfere e concentra o valor. Ao longo do tempo essa prática pouco ou nada se fez notar e, ao contrário, foi fomentada, justamente por oferecer crescimento da economia e desenvolvimento social, na medida em que as empresas, na ânsia por mais lucro, abriam mais unidades de negócio, gerando mais empregos e mais renda. Talvez nesses momentos sequer pudéssemos nomear propriamente o Capitalismo desse modo, pois o eixo central que fazia girar a economia era a produção industrial e depois o comércio. O mundo ainda era escasso de recursos e qualquer empresa que tivesse como objeto social a criação desses recursos era bem vinda e o lucro apenas um preço a pagar pela criação desse valor.

Contudo, o século XXI marca um estágio de desenvolvimento humano em que temos abundância de todos os tipos de recurso. Diria até mais temos, em alguns casos, excesso de recursos e mesmo desperdício. O problema é que nesse momento o lucro revela sua face mais verdadeira: a de vilão! Torna-se uma máquina que enxuga, que draga os valores que circulam das outras esferas da economia, poderíamos dizer nas camadas mais abaixo da pirâmide social e conduz esses valores para o topo. São produtores de desigualdades sociais, de pobreza, de privilégio para poucos.
Nas discussões mundiais sobre a questão da sustentabilidade esse assunto não passou incólume. Muito se foi dito sobre a questão da erradicação da pobreza, sobre equidade social. Compromissos foram assumidos por vários países. Mesmo os países ditos mais ricos, onde a pobreza é muito pequena ou até inexistente, assumiram para sí o compromisso de ajudar países mais pobres nesse sentido. Contudo a ação dos países pobres fica até certo ponto restrita a programas de assistência social, a investimentos em infraestrutura que possam gerar empregos e fazer girar a economia. Portanto é preciso que existam ações da iniciativa privada para contribuir com esse fim. A partir dessa necessidade e compromisso, nasceu entre as empresas a ideia de Responsabilidade social empresarial (RSE). Algumas empresas começaram a destinar verbas com essa finalidade, mas no geral essas verbas eram destinadas a algum tipo de filantropia. Contudo não sei se essas verbas destinadas a esse fim saíram do lucro das empresas ou somente compuseram seu custo e, com isso foram repassadas ao preço final de seus produtos. Muitas empresas mesmo, na figura de seus departamentos de recursos humanos começaram a valorizar alguns currículos de candidatos que faziam algum tipo de trabalho voluntário. Contratar esse candidato agregaria valor à empresa. Muitas mesmo passaram a estimular programas de voluntariado entre seus colaboradores. Cediam algumas horas de seus colaboradores, forneciam a logística necessária para que visitassem hospitais, orfanatos, asilos ou se empenhassem em auxiliar à comunidade do entorno dessas empresas. Escolas foram pintadas, ofícios foram ensinados para comunidades carentes, aulas de economia doméstica e outras tantas compuseram essas iniciativas. Talvez menos por certo altruísmo e mais para elevar a reputação dessas mesmas empresas.
Essas atividades, porém, ficavam restritas à verba destinada a elas. Tratava-se de custo a ser pago pelas empresas e até certo limite não comprometeriam seus resultados financeiros, nem a imagem com os acionistas. Redesenhando essa prática, surge o conceito de Criação de valor compartilhado. A ideia aqui é buscar atividades que possam produzir valor para a sociedade, mas que também agreguem mais lucro para a empresa. A Nestlé, por exemplo, abraçou essa ideia e reconduziu seus esforços para esse sentido. Mais do que somente algum tipo de caridade, percebeu que o produtor rural tinha necessidades pessoais e tecnológicas que afetavam direta ou indiretamente a qualidade e a quantidade do produto que era fornecido para a Nestlé e, com isso, afetava o produto que ela mesma industrializava. Para tanto, viu na estratégia de capacitar os produtores rurais um diferencial que produzia tanto valor para os próprios produtores, quanto para seu próprio produto e negócio. Gerar valor e benefícios para todos os envolvidos. Mais do que apenas investir na capacitação dos produtores, seu objetivo manifesto é o de contribuir para a melhoria na condição social e economia da sociedade rural. Suas iniciativas visam, entre outros objetivos, a manutenção do homem no campo, mas com dignidade e inclusão social. O desenvolvimento das comunidades com a geração de empregos diretos e indiretos. Melhoria na educação, nos serviços e em tudo o que possam oferecer valor para o homem do campo.
Outra iniciativa que parece se alinhar a esse conceito é a da Coca cola. Um dos principais motivos de a empresa sofrer certo repúdio à sua instalação ou permanência em determinada região era seu próprio consumo de água. De acordo com Fernando Almeida[2] até 1997 o consumo era de 5,4l de água por litro de bebida produzida.  Embora esse consumo tenha sido reduzido drasticamente, percebe-se que esse é seu calcanhar de Aquiles. Mais do que iniciativas de ecoeficiência que fizeram reduzir os números alarmantes de consumo desse precioso insumo, a Coca cola destinou grandes empenho para coletar água de chuva, mas talvez seu investimento mais importante seja o de replantar matas ciliares. As matas ciliares são essenciais para rios, lagos e toda e qualquer fonte de água. Evita o assoreamento, reduz a evaporação e preserva a qualidade da água. Mais do que preservar esse insumo essencial de sua produção, também garante o abastecimento desse bem para a população do seu entorno. Garante a viabilidade de sua produção e agrega valor para a sociedade.
Diferente da ideia de RSE, o CVC garante que o investimento social privado será mantido ainda que a empresa passe por eventuais ou sazonais períodos de dificuldades financeiras. Dificilmente, em épocas de vacas magras será destinada polpuda verba para qualquer tipo de caridade. Contudo, na medida em que o CVC atua em investimentos diretamente ligados ao seu Core Busines, isto é o núcleo central de seu negócio. A possibilidade desse investimento se interromper fica reduzida e tanto uma iniciativa quanto a outra produzem ainda dividendos para a reputação da companhia. Cabe agora a cada gestor e sua equipe a criatividade e visão para enxergar as oportunidades de investimento social privado para a criação de valor compartilhado alinhado ao seu próprio negócio. A Nestlé investe na produção rural de alimentos, a Coca cola na preservação da água. Outras empresas podem investir em educação da população que pode se tornar mão de obra qualificada, ou em inclusão digital que permitirá a iniciativa da prática do Home Office. Outras podem investir em moradia, ou em transporte que pode beneficiar o escoamento de sua própria produção. A idéia é fazer com que as empresas invistam em benefícios sociais que elas mesmas também se beneficiem de seus próprios investimentos.
Isso pode acabar vinculando dois objetivos que até então eram contrastantes. As empresas sempre visaram lucro e os benefícios sociais eram da conta ou da própria população ou, se tanto, do governo. Agora alguns desses benefícios podem produzir, garantir ou aumentar o próprio lucro. Se a população até então ficava no aguardo de que a boa vontade de algum governante colocasse tais benefícios em pauta, pode a partir de então contar com outro tutor interessado em seu benefício. Pode até mesmo se organizar e propor iniciativas criativas que possam criar tais valores. Pode até mesmo, se o investimento desejado for de alta monta, propor o compartilhamento em mais de uma empresa. Quiçá na construção, infraestrutura e manutenção de alguma vila operária, que evitaria atrasos ou faltas de seus colaboradores. Transporte rápido e de qualidade para escoar sua produção tanto quanto para beneficiar a população. Isso acabaria por aproximar a população civil das empresas e relegar a relação com o governo para um segundo plano.
Ante ao até agora exposto, só temos benefícios a contabilizar. Contudo é preciso retirar os olhos do foco central e atentar para possíveis consequências daninhas que o conceito de CVC pode ensejar. A imagem que podemos fazer da organização desses atores pode muito bem ser a seguinte: Um Estado, representado pela figura do governo e dentro dele coexistindo e cooperando para benefício mútuo pessoas físicas e pessoas jurídicas. Empresas e sociedade civil. Contudo em épocas de grandes fusões de grandes empresas, essas pessoas jurídicas, muitas vezes representam uma quantidade de recursos financeiros que pode ultrapassar em muito a capacidade de inúmeros países inteiros. São empresas transnacionais com penetração global e interação com populações de inúmeros países ao redor do globo. Então a imagem apresentada parece não corresponder à verdade. Não são pessoas jurídicas “dentro” de governos, mas muitas vezes, partes de um país dentro de grandes empresas. Grandes parcelas das populações de inúmeros países do mundo sendo tuteladas por grandes corporações transnacionais. Na medida em que empresas, investindo no bem estar das sociedades, papel que deveria ser cumprido por seus governos, conseguem alavancar reputação e credibilidade ante a essas mesmas populações e se tornam, por assim dizer novos tutores de parte dessas sociedades, pode chegar o momento de que se questione a própria importância e necessidade do governo. Mais ainda, sabendo que em tempos de política globalizada os principais financiadores de campanha são as próprias grandes organizações, onde o eleito de algum modo se torna ao menos parcialmente refém dos interesses de seus financiadores de campanha, posto que sua reeleição correria o risco de ficar sem o devido financiamento. Mesmo a figura do governante não passa mais do que figura caricata. Função análoga à da rainha da Inglaterra.
Visto a partir dessa perspectiva pode-se conjecturar uma eventual mudança dos contornos políticos e geográficos do planeta como um todo. O próprio nascimento do modelo capitalista, que ocorreu concomitante com a independência americana e a Revolução Francesa, marcou, por assim dizer, uma mudança profunda dos contornos geográfico-políticos do mundo. A instauração de Estados autônomos ou de federações de Estados redesenhou o planeta e as cartilhas escolares. Que imagem e contornos poderiam condizer com sociedades tuteladas por empresas privadas? Imaginemos, por exemplo, essas duas empresas citadas linhas atrás. Admitindo que essa iniciativa se estenda a todos os países onde essas empresas atuam, e se exerça em parcelas expressivas da população desses mesmos países, teríamos sob a mesma tutela, brasileiros, argentinos, venezuelanos, norte-americanos, africanos e tantos mais quanto o campo de atuação de cada uma dessas empresas ao redor do planeta. Uma sociedade de mesma identidade, ideais e tutela esparramadas por diversas partes do planeta parece romper com as linhas geográfico-políticas que conhecemos hoje. A imagem não permite o estabelecimento de contornos físicos. Os contornos são meramente conceituais. Seriam talvez sociedades privadas de um mesmo tutor. As taxações alfandegárias acabariam por perder o sentido. Governos talvez fossem necessários, mas acabariam por ter seu exercício e influência reduzidos, do mesmo modo que o papel dos Reis nas monarquias parlamentares atuais. O produto interno bruto (PIB) acaba por ser o resultado da empresa Holding? Quem definiria as diretrizes da educação? Quem definiria as leis?
Não se trata de mera alucinação, mas da transposição de uma mudança profunda que ocorreu na história com a virada de um modelo econômico feudal para um modelo capitalista. Ora, não foi de uma hora para outra que essa mudança se deu. Muitos eventos conspiraram ao longo do tempo para marcar essa mudança. Hoje vemos governos desacreditados, populações desassistidas e grandes conglomerados empresariais que detêm poder e capital maior do que muitos países. Com mais chances de oferecer benefícios e recursos, mais ainda eficiência administrativa para gerir tanto negócios quanto para a coisa publica. Se essa coisa pública transformar-se em privada e lucrativa, mas ainda haverá interesse nessa transformação.


[1] Termo criado em 2006 por Michael Portes e Mark R. Kramer
[2] ALMEIDA, Fernando. Experiências empresariais em sustentabilidade: Avanços, dificuldades e motivações de gestores e empresas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009

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