Existem razões justas para o suicídio? Sobre significado e sentido.


(Por Jadir Mauro Galvão) 

Tive oportunidade de atuar com alguns suicidas ao longo de minha carreira como mentor de pessoas. Nem de longe eram pessoas irracionais ou insensatas, pelo contrário, pareciam bastante lúcidas e decididas. Era até intrigante, pois parecia incoerente que essas mesmas pessoas que se mostravam tão razoáveis cometessem um ato que em minha mente parecia tão desarrazoado. Justo a Vida, que se mostrava tão claramente como o maior valor dos seres humanos[1], com poucas, raras e específicas exceções. Era necessário que existisse um valor que fosse hierarquicamente superior à própria vida para justificar racionalmente o ato de suicídio. Mas esse valor ou não se mostrava facilmente ou eu mesmo não era até então capaz de encontra-lo. Que valor seria esse, superior à própria vida e capaz de motivar uma ação que atentasse contra ela?  

Mas, o rigor acadêmico nos exige pesquisa para que nossas teses tenham um bom alicerce e deixem de ser apenas opiniões baratas. Fui, então, em busca das principais teses acerca das causas do suicídio. Quem sabe não encontrasse respostas para minhas perguntas mais intrincadas. Logo me deparei com a tese de Durkheim do Fato Social. Busquei compreender a tese que indicava que os fenômenos sociais independem da decisão dos indivíduos e ocorrem mesmo em detrimento delas. Esses tais fatos sociais subjugam a própria ideia de livre arbítrio. E Durkheim demonstra sua tese justamente com dados estatísticos acerca do suicídio. O fato de ele ocorrer independente de fatores, econômicos, sociais e psicológicos.  

Mas tanto quanto eu, sei que muitas pessoas são avessas às ideias de Durkheim, então fui ver o que diziam as últimas pesquisas e artigos a esse respeito. Alguns davam conta de que fatores emocionais como estresse e depressão figurassem como causas do suicídio. Mas ai precisaríamos nos debruçar novamente sobre as causas do estresse e da depressão. Outros atribuíam a fatores químicos ou genéticos. Mas em quase todas essas teses havia um elemento que eu não estava disposto a encarar: O fato de que o suicídio aconteceria independente de esforços em contrário. Nos tornava impotentes para evitar esse fenômeno tão indigesto. Fato social, causas químicas ou genéticas... pareciam não responder de modo claro à pergunta: O que leva um indivíduo a cometer suicídio? Ou não respondia a pergunta ou a tornava inútil, na medida em que não levava a nada senão a uma ideia de fatalidade e impotência.

Decidi me voltar para as minhas próprias experiências com suicidas. Buscava entender as circunstâncias e as intenções, mais do que as razões e motivos. Com esse expediente acabei descobrindo uma diferença entre razão e intenção. A razão, que é aquela que a pessoa verbaliza e que tem a capacidade de justificar determinadas ações está voltada para o entendimento, para a cognição. São argumentos racionais com a pretensa capacidade de tornar um ato logicamente correto e apropriado. Em tese, os argumentos racionais tem a capacidade de nos fazer entender e mesmo justificar uma ação. Mas também percebi que muitas pessoas acabam “construindo”, elaboradamente uma série inapelável de argumentos apenas para seu convencimento próprio ou para justificar sua ação para com outras pessoas e não ser tido como incoerente ou mesmo louco.

Intenção, por outro lado, está na profundidade. É menos lógica e mais sentimento. É uma força que vem de dentro e em geral, é mais honesta do que a razão. Razão, muitas vezes serve apenas para retirar alguma culpa ou remorso. Mas a intenção embora mais honesta, nem sempre é sensata.

Aí descobri o que penso ser o grande segredo por traz de muitos suicídios. Vou dar apenas dois exemplos, mas haveriam muitos mais para chegar a essa conclusão.

 O primeiro deles era de uma mãe que havia tido cinco filhos maravilhosos. Foi uma mãe dedicada, abandonou sua promissora carreira profissional, pois a maternidade era para ela de suma importância. Os anos de sua vida eram cobertos de atividades e ela mesmo sentia-se orgulhosa do cuidado e da educação que oferecia aos filhos. Dizia aos quatro ventos que a razão de sua vida era ser mãe. E, de fato se mostrava excelente no que fazia. Conduta irrepreensível como mãe, dedicada, atenta, solícita, um exemplo de mãe. Contudo, com o tempo passando esses filhos foram crescendo e ganhando em autonomia. Todos já estavam bem encaminhados e alguns mesmo casados.  

Era de se esperar que essa mãe experimentasse um sentimento de realização, satisfação e mesmo certo orgulho, mas sem um sentido aparente ela sentia uma tristeza extremamente profunda e uma total falta de motivação em sua vida. Não conseguia encontrar satisfação em nada mais. Se via perdida, sem rumo, nem direção. Sem prazer em nada. Até sua relação com os filhos se havia modificado. Ela que sempre havia sido terna, paciente, agora se tornara impaciente e rude mesmo com os filhos. Ainda tinha vitalidade e mesmo a perspectiva de muitos anos pela frente, mas os pensamentos suicidas a perseguiam incessantemente.

Depois de muito explorar e quebrar a cabeça, um click estala como resposta: a razão de sua vida era ser mãe! E agora ela já não era mais. Não precisava mais de todos os cuidados, da alimentação, no asseio, da educação dos filhos. Já eram crescidos, não precisavam mais dela e mesmo queriam dela cuidar. Sentia-se inútil. Sua vida havia perdido o sentido.

Embora isso me parecesse coerente, não podia aceitar que uma pessoa viesse ao mundo apenas e tão somente para ser mãe. Então resolvi investigar a vida dela e mesmo os planos e sonhos que tinha antes da maternidade. Descobri sonhos encantadores e planos tanto ousados quanto de grande valor. Mas que ficaram de lado assim que ela viu a perspectiva de ser mãe. Isso assumiu a prioridade e mesmo o papel de sentido de sua vida.

É bastante razoável que a benção da maternidade deixe em segundo plano projetos profissionais e mesmo sonhos pessoais, mas daí a decretar que ser mãe era a razão de sua vida havia certo descompasso. Ela acreditou tanto nisso que acabou por confinar seus sonhos mais lindos nas profundezas de seu subconsciente. Já nem se lembrava mais deles.

Foi aí que resolvi trazer a tona todos esses sonhos, com o brilho que tinham em sua juventude. Resgatar um sentido próprio de sua vida e que havia sido deixado em último plano por conta da maternidade.

Na medida em que ia trazendo à tona todos aqueles sonhos e projetos, via acender novo brilho em seu olhar. A ponto de sua vida ser novamente vista como algo de real importância. Claro que muitos dos sonhos tiveram de ser readaptados e mesmo muitos deles deixados de lado. Mas foi possível ver renascer um real sentido para uma vida.

Outro caso foi de um homem, pai de família, que havia tido uma carreira de bastante sucesso. Tinha uma boa casa, filhos bem formados, uma situação material e financeira bastante privilegiada. Tudo fruto de grande dedicação e mesmo alguns sacrifícios. Mas, havia sido demitido da empresa depois de muitos anos de trabalho dedicado. Havia recebido uma polpuda indenização, já podia se aposentar, mas todo o glamour do cargo que ocupava, da empresa em que trabalhava, do prestígio que tinha, havia sido perdidos. Havia um grande temor de que a família passasse por necessidades, mas que logicamente não se confirmava sob qualquer hipótese.

Embora fosse um profissional com uma carreira invejável, nunca fora ele mesmo a traçar seus caminhos e planos. Sempre se viu atendendo a demandas que lhe apareciam sem maiores esforços. O emprego, as formações, as promoções...

Mas agora ele tinha de dar rumo para sua vida. Para onde ir? Em que apostar? Estava perdido e sem direção. Aposentar, descansar, e aproveitar não faziam parte de seus planos. Mas a rigor ele nem tinha planos. Ao menos acerca do que ele queria. Apenas do que não queria. E não era, definitivamente, essa vida que ele queria. Acordar todos os dias sem um compromisso que lhe cobrisse de importância e responsabilidade.

Mais uma vez aqui se revelou uma diferença profunda entre significado e sentido. Estes eram menos sinônimos e mesmo coisa completamente diferente. Nesses dois casos a vida dessas pessoas foi coberta de bastante significado, mas que ou eram passageiros ou eram calcados em alicerces pouco estáveis. Na medida em que o tempo passou e os alicerces ruíram, isso deu a falsa aparência de que a vida lhes havia perdido o sentido. Mas não era verdadeiro sentido, mas sim significado. Atribuído pela própria pessoa, pela família e em outros casos pela sociedade. Atribuídos arbitrariamente.

Minha tarefa foi de resgatar um sentido próprio de cada uma dessas vidas. Mas seria apenas atribuir um novo significado ou haveria um sentido único e próprio para a vida? Devo confessar que foi exatamente essa pergunta que me fez adentrar ao campo da filosofia. Essa dúvida era por demais importante para ser respondida de modo prático apenas. Somos nós que atribuímos significado à vida ou ela já tem seu sentido próprio?

Refleti por longos anos sobre essa questão e percebi que há sim um sentido que é próprio da vida de cada pessoa. Não é o mesmo para todas elas a não ser na forma, isto é, o de realizar uma ação personalizada no mundo.

Cada um, quando chega a esse mundo, já vem com certas características que lhes são próprias e particulares. É como se chegássemos com uma caixa de ferramentas. Na do Pelé veio uma bola e uma chuteira, na sacola de Chopin veio um piano. Em outras pessoas veio um dom de ensinar, noutros de calcular, desenhar ou coisas do tipo. Cada qual com seu dom deve fazer algo no mundo para usá-lo, Bem grosso modo os orientais chamam a isso de Dharma.

Mas em nosso mundo, a atribuição de significados é arbitrária e noutras vezes até meio maluca. Coloca a fama como mais importante que a saúde, o dinheiro mais importante que a vida. Desemprego como indignidade, dificuldade de pagamento como desonra. Poder como superior a família ou ensino técnico superior à formação do cidadão.

E nessas confusões nossas de cada dia é fácil perder o fio da meada e acreditar que a vida perdeu o sentido, quando apenas ruiu um edifício conceitual mal elaborado. Assim é possível entender que uma criança ou adolescente que está dando seus primeiros passos na escola e que coleciona algumas notas baixas possam acreditar que fracassaram nas provas mais fáceis da vida, então o que será quando vierem as mais difíceis?

Quando se tem uma desilusão amorosa daquele amor juvenil e que parecia ser verdadeiro e eterno arruinar todos os sonhos de uma vida. Confiamos no efêmero, no transitório, no que alguns acreditam e acabamos por perder um real e próprio sentido da vida.  

Daí uma necessidade premente de se reencontrar o caminho, o real sentido da sua vida. Não atribuir um mas descortinar o que já existe. Um sentido próprio, não atribuído pela sociedade, mas um verdadeiro sentido sagrado da vida e vê-la como o presente que ela é.



[1] Estava à época entrevistando um considerável número de pessoas na tentativa de “encontrar” uma tábua de valores coerente que demonstrasse tanto os valores das pessoas, quanto suas motivações para ação. Exceto nas motivações mais superficiais e subjetivas, encontrava uma tábua de valores extremamente coerente e consistente a ponto de ser válida para todos eles. Com aparente força para ser generalizada para todo ser humano. Na base dessa escala, como valor mais elevado, aparecia justamente a Vida como superior a todos os outros valores.    


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