Sabe como compatibilizar Onisciência Divina e livre arbítrio humano?
Sabe
como compatibilizar Onisciência Divina e livre arbítrio humano?
(Por Jadir Mauro Galvão)
Certos
problemas lógicos são difíceis de encarar. Parecem afrontar nossa razão a um
desafio hercúleo. O problema é que esse não enfrentamento acaba produzindo
silenciosamente em nossa alma certo desalento. Lá no fundo sabemos que é
necessária uma solução para estruturar ou até desestruturar nossas convicções e
mesmo nossa visão sobre o mundo. Mas certos problemas não se oferecem de
maneira fácil ao entendimento. Algumas coisas do mundo natural ou do mundo
humano são mais fáceis de encarar, mas estas são poucas. Ai corremos o risco de
achar que a vida se resume as essas pequenas coisas vulgares, essas que o
entendimento se sente confortável, e acabamos tornando nossa vida muito menos
rica do que poderia ser.
Com
o tempo e nossa corrida louca pelo dinheiro, nos desabituamos de acessar as
demasiadamente profundas fronteiras do pensamento e da lógica a tal ponto que
acabamos por crer num poço sem fundo. Só de chegar na beira já sentimos certa
vertigem. É o que costumeiramente ocorre quando buscamos, através da nossa
lógica mais ordinária, dirimir a distância entre as noções de Onisciência de Deus e compatibilizá-la
com o livre arbítrio humano.
Ora,
se Deus é Onisciente, isto é, se Ele já sabe de antemão quais serão nossas
escolhas e ações, então isto já está pré-determinado e somente eu mesmo ainda
não o sei. Por outro lado, se existe o livre arbítrio, então Deus não pode saber qual será nossa escolha.
Isso derruba não só a noção de onisciência divina como também sua onipotência.
Por
qualquer via, nossa razão ordinária nos leva a um beco sem saída. Ou pior,
acaba por pairar em nossa mente uma dúvida acerca de todo o edifício de nossa
ideia de Deus.
Para
nossa sorte, Santo Agostinho nos deu um bom exemplo de como resolver tais
problemas, quando se sentiu obrigado a dar conta de outras dessas, aparentes,
incoerências lógicas, e nos mostrou que não devemos temer a vertigem. Se a
lógica realmente nos conduz à verdade, tanto quanto a fé, cedo ou tarde a
lógica, se perseguida com o devido esforço e esmero nos levará ao mesmo ponto
das verdades “reveladas” pela fé. Mas talvez nossa lógica e nosso entendimento
precisem de uma ajudinha, de uma pequena luz da fé. Agostinho nos mostra isso,
quando busca responder às afrontas dos maniqueístas que perguntavam sobre qual
a “origem do mal no mundo”, ou sobre “o que fazia Deus antes da criação”. O
caminho aflitivo na busca das respostas está belamente preservado nas tocantes
páginas das Confissões. De sorte que
esse texto não é tempo nem lugar para se ocupar esses problemas. Certamente não
o faria melhor, tampouco de maneira aceitavelmente bela como o fez Agostinho.
Mas
antes de nos lançarmos temerariamente nessa jornada precisamos tomar a precaução
de estar munido da ferramenta apropriada para tal. Platão nos dava conta de que
a alma era dividida em três partes. A mais “divina” e superior delas, o Lógos,
tem uma relação mais estreita com as coisas divinas e está hierarquicamente acima
da nossa razão como bem lê Plotino nas Enéadas:
Muitas vezes
ocorreu-me ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo; ser retirado das
coisas externas e introduzido em mim mesmo; e então ver uma Beleza maravilhosa,
tornando-se ainda maior a certeza de que pertenço à ordem superior dos seres
por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida; ter-me identificado com a
divindade; ter-me estabelecido nela; ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto é inteligível, exceto o Supremo. No entanto, depois dessa estadia
na região divina, quando desço da Inteligência ao raciocínio, pergunto-me
perplexo como é possível a minha Alma estar neste corpo, sendo ela, mesmo
estando no corpo, essa coisa elevada que se revelou a mim?
(Enéadas de PLOTINO,
2000, p. 81)
Então
é a esse Lógos superior a quem devemos recorrer e não a uma razão mais
ordinária. Para tanto, vamos tentar ao modo da “caverna” de Platão, buscar uma
alegoria que nos permita acessar uma lógica que vá além de nossa razão
meramente prática.
Vamos
admitir que o mundo seja um enorme tabuleiro de xadrez. Temos um incontável
numero de casas pretas e brancas. Ousemos, para dar conta da diversidade do
mundo intercalar outras casas de outras cores. Para além dos anacrônicos,
bispos, cavalos, rei e rainha, vamos admitir outras peças nesse nosso tabuleiro
Divino. Vamos admitir peças como o proletário, o artista, o empresário, o político
etc. dando conta de toda a sorte de papeis que temos em nossa sociedade. Ora, o
pressuposto é que, quem criou tanto o tabuleiro, as regras quanto as peças foi
Deus.
Na
Sua infinita capacidade, conhece as regras do jogo por Ele criado, todo o
fatorial de possibilidades de movimentações dentro das regras de cada peça.
Mais perfeito do que qualquer supercomputador, Ele é capaz de saber toda a
sorte de possibilidades do jogo. Na medida em que vamos nos movimentando dentro
do jogo isso nos oferece tanto algumas possibilidades, quanto nos retira outras
tantas. Um movimento numa direção nos obriga a desistir da direção contrária.
Passo
a passo, lance a lance no cruzamento de todas as peças do jogo algumas
possibilidades são previsíveis, enquanto outras acabam sendo descartadas. Mas,
diferente do nosso conhecido xadrez onde as peças são sempre em número definido
e uma mesma cabeça direciona várias peças, no tabuleiro, no nosso jogo
imaginário, cada peça tem a liberdade de fazer sua movimentação livremente,
claro que, dentro das regras do jogo, dentro das regras de sua própria
movimentação e mesmo cerceado pela movimentação do outro jogador. Do mesmo modo
e dentro das regras do jogo, de tempos em tempos alguns jogadores “saem”
temporariamente do jogo e outros “entram”.
Deus
conhece todas as possibilidades de todas as movimentações, todos os fins
possíveis para toda e qualquer partida ou jogador, e todas as alternativas. Daí
a sua onisciência. Ainda que não saiba qual será o lance deste ou daquele
jogador, sabe que tal escolha se dará dentro das tantas possibilidades
colocadas à disposição. Cada jogador é livre para fazer sua jogada ainda que
sendo obrigado a se ver tolhido muitas vezes pelas jogadas dos outros
jogadores. Daí a ideia de livre arbítrio.
Agora
vamos admitir que um jogador entre em nosso jogo com uma arma letal. Num lance
ou noutro ele “elimina” uma das peças impedindo que ela continue a jogar até
onde poderia, estragando assim uma porção de lances do participante que foi
eliminado, bem como lances de outros participantes que contavam com a presença
daquele participante. E isso tudo “fora” das regras previamente combinadas, uma
pequena trapaça no jogo. Uma interpretação peculiar das regras, visando
beneficiar a apenas esse jogador. Estratégia tão leviana que outros, mesmo
tendo a possibilidade de se beneficiar, não estariam dispostos a realizar.
E
se ele eliminasse não apenas um, mas vários participantes ou mesmo retirasse a
mim mesmo! Esse é um jogador que tenta burlar as regras estabelecidas, ainda
que seja essa uma possibilidade. Mesmo um jogador que a cada peça comida no
nosso tradicional tabuleiro quebrasse uma peça não seria bem visto. Pois isso
impediria que houvesse um próximo jogo.
Ou
talvez um jogador, também munido de uma arma, mas que em dado momento não
retirasse outro participante, mas ele mesmo se retirasse do jogo! Desistisse do
jogo. Ficasse tão somente na borda do tabuleiro observando as pessoas lutarem
com bravura, colecionarem seus sucessos e fracassos. Se levantarem com
esperança renovada, mesmo depois de vários dias de derrota. Adquirirem
aprendizado, desenvolverem suas virtudes ou mesmo mostrarem seus vícios. Essa
pessoa, por estar fora do jogo não poderia mostrar seu valor. Não poderia lutar
contras eventuais trapaças de outros jogadores.
Dentro dessa alegoria podemos inserir as mais
diversas situações de nossa vida. Admito que, por se tratar apenas de uma
alegoria, existam situações da vida que não caibam nela. Embora nesse momento
não me venha nenhuma à mente. Não há intenção aqui de dar a prova da existência
de Deus. Existem outros tantos argumentos lógicos nesse sentido em Santo
Anselmo de Aosta ou em São Tomas de Aquino e mesmo em Descartes, embora
considere todos ainda insuficientes para tal. Quero apenas resgatar uma
possível alma que tenha se desalentado por não encontrar meio de compatibilizar
onisciência divina com livre arbítrio humano e, por conta disso, acabou tendo
suas esperanças em Deus arrefecidas. Esse problema, junto com os de Santo
Agostinho e talvez até outros, podem, se não resolvidos, nos colocar em Dúvida
acerca da ideia de Deus. Quero aqui apenas dirimir o problema que gera a
dúvida. Dissipar apenas uma das espessas camadas que nos estorvam a conexão com
Deus. Há menos uma ideia de proselitismo e mais uma ideia de desatar os nós e
fazer dissipar as ilusões de nossa lógica que por vezes se mostra um tanto
tosca. O caminho para encontrar a Deus é solitário, mas é sempre bom ter alguém
que desobstrua o caminho.
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